Agronegócios: a irreparável falta de Censo recente

            As mudanças estruturais dos agronegócios brasileiros, nas últimas décadas, representam um fato histórico reconhecido e aceito pela opinião pública nacional. Nos anos 80, para muitos 'a década perdida' da economia brasileira, a agricultura, com base nas contas nacionais, avançou a taxas superiores à da economia do país.
            Nos anos 90, num suceder de 'supersafras' de grãos e fibras iniciado em 1989, transformações aprofundaram as mudanças da década anterior. Isto permitiu que os agronegócios entrassem no novo século alavancando a renda interna e sustentando seguidos e crescentes superávits na balança comercial nacional. De outro lado, ainda que com esse desempenho, entre 1993 e 2003, houve a perda absoluta de 1,8 milhão de empregos na agropecuária, o primeiro elo das cadeias de produção da agricultura¹.
            A análise estrutural dessas mudanças é fundamental para a compreensão da essência do processo de desenvolvimento, não apenas nas suas relações produtivas mas, principalmente, nos seus corolários na sociedade brasileira em geral. Mais que produzir alimentos e matérias-primas, a agricultura tem a função primordial de regulação do mercado de trabalho.
            Nesse sentido, um instrumental essencial está representado nas séries de censos agropecuários, que, enquanto radiografias de cada momento histórico, permitem, na sua seqüência lógica com periodicidade temporal conhecida, estabelecer a compreensão da realidade no seu devir histórico, lançando mão de elementos empíricos consistentes. A realização e a publicidade de censos agropecuários consistentes, para a consolidação da sociedade democrática que só se dá na plenitude do acesso à informação, têm o mesmo sentido da quebra do sigilo bancário para as investigações da lavagem de dinheiro escuso.
            Importante salientar a relação entre os períodos históricos de desenvolvimento da agricultura e a realização dos censos agropecuários e o quanto a sua ausência custou para a compreensão da realidade nacional. Tome-se o censo agropecuário de 1960, realizado no final da implementação do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Pode-se defini-lo como ponto de partida na análise das mudanças estruturais da agricultura brasileira, conformando-se como retrato da realidade anterior à fase mais profunda de modernização da agropecuária.
            Esta foi impulsionada não apenas pelas mudanças estruturais e fiscais da metade dos anos 60, mas, principalmente, pela estruturação do crédito rural subsidiado que data do mesmo período, o qual permitiu a incorporação crescente de insumos e máquinas, além da inserção da agropecuária na lógica do sistema financeiro, bem como, no seu lado de crédito agroindustrial, deu sustentação à agregação de valor ao produto setorial pelo financiamento da expansão agroindustrial.
            O impacto das mudanças pode ser verificado a partir do censo agropecuário de 1970, ainda que a inexistência de censo agropecuário em 1965 faça surgir dificuldades na definição do ritmo inicial dessas transformações. As políticas públicas de modernização setorial estão datadas da segunda metade dos anos 60, e a não-disponibilidade de dados censitários para a agropecuária em 1965 impede a comprovação empírica do tamanho dos efeitos estruturais da crise econômica e setorial da primeira metade da década. Se realizado, o marco na periodização da evolução histórica da agricultura brasileira poderia ser 1965, e não 1960 ou 1970, mas para isso não há como suprir a falta de bom censo.
            A década de 70 e a primeira metade dos anos 80 representaram a consolidação da transformação estrutural resultante da generalização do padrão da Segunda Revolução Industrial determinado na industrialização da agricultura. Essa fase da economia agrária brasileira pode ser analisada nos seus diversos aspectos, pois está documentada e retratada de forma conveniente nos censos agropecuários de 1970, 1975, 1980 e 1985.
            Contraditoriamente, desde que ocorreu o processo de democratização, quando se deveria esperar maior compromisso com a democratização das informações, simplesmente não há disponibilidade de dados censitários consistentes. O censo agropecuário de 1995, na verdade realizado entre agosto de 1995 e julho de 1996², apresenta discrepâncias que impedem tomar suas informações para análises estruturais absolutamente relevantes, como o cálculo do produto interno bruto (PIB) setorial que tem como lastro informações do censo agropecuário de 1985.
            Um enorme conjunto de políticas públicas está submetido a evidências empíricas de uma realidade que não existe mais. Muitos dos pressupostos podem mesmo estar completamente ultrapassados, como a participação dos diferentes perfis de produtores na produção das diversas culturas, a localização espacial das lavouras e criações, as mudanças na estrutura agrária tanto nas regiões de ocupação recente quanto nos efeitos sobre a mesma nas regiões de ocupação antiga.
            No debate sobre o desenvolvimento dos agronegócios brasileiros, um significativo rol de pressupostos, por vezes antagônicos, é propalado sem que se possa oferecer reflexão consistente porque lastreada em evidências empíricas. O principal deles consiste na profundidade da mudança estrutural operada desde os anos 80, que compreende mudança do lócus espacial de segmentos importantes como grãos e fibras, com o avanço da fronteira de expansão para o cerrado, a amazônia e faixas do nordeste como o oeste da Bahia e o sul do Maranhão.
            O simples enumerar dos fatos que marcam as transformações da agropecuária brasileira, desde a metade dos anos 80, mostra como os coeficientes estruturais desse setor devem estar distantes daqueles consignados no censo agropecuário de 1985.

  • As seguidas supersafras de grãos e fibras, ensejando considerável expansão enquanto lavouras de escala no Brasil Central e outras zonas da fronteira de expansão, fizeram a produção nacional saltar do patamar de 50 milhões de toneladas para o de 120 milhões de toneladas, com efeitos estruturais relevantes como a distribuição da origem da produção por área de lavoura. Compreender a magnitude dessa evolução requer bom censo.
  • A mudança do perfil da maquinaria agropecuária empregada nas lavouras de grãos e fibras (e também na de cana para indústria), face a vendas crescentes de tratores e colhedoras de maior potência, somente faz sentido com incrementos na área média das lavouras e o conseqüente impulso no sentido da maior área média dos estabelecimentos, gerando maior concentração de terra e de renda. Definir a profundidade dessas transformações exige bom censo.
  • Os estudos agrários, nesse caso, estão defasados pela inexistência de bases empíricas globais que permitam uma visão espacial e estrutural dessas transformações. Em especial, para a expansão de culturas de baixo valor unitário como as commodities, tal processo só tem consistência se explicado pelo aumento da renda agropecuária bruta com base em maior volume da produção, tanto por unidade de área quanto por proprietários. Na produtividade por área, há de se estabelecer o ritmo das inovações tecnológicas e, na por proprietário, o ritmo da incorporação de novas áreas, ambos parâmetros desconhecidos pela ausência de bom censo.
  • As mudanças estruturais no processo de trabalho rural estão longe de ser conhecidas na sua plenitude. As evidências superficiais de incremento da mecanização e da automação de processos, o que exige maior qualificação e estabilidade, propugnam por relevantes alterações nesse sentido. Mas não se permite evidenciar a essência das mesmas, tanto no aspecto tanto espacial quanto qualitativo, dada a inexistência de base empírica lastreada em dados censitários que viabilizem análises comparativas em relação a 1985.
  • As práticas de incentivos regionais com base tanto nos fundos constitucionais, quanto nos mecanismos deletérios da guerra fiscal, produziram alterações estruturais profundas na economia agrária Há de se refletir sobre a consistência da manutenção de tais mecanismos voltados para regiões já aquinhoadas com padrão de desenvolvimento, o que os tornam impróprios. Defendidos em nome do 'subdesenvolvimento regional' e da 'pobreza rural', em várias regiões tais mecanismos persistem ainda que a realidade seja outra. Detectar tais distorções alocativas e redimensionar a alocação desses recursos é essencial para a redução de disparidades estruturais. Entretanto, para tal também falta bom censo.

            Em síntese, o processo de transformação da agricultura brasileira, nos últimos vinte anos, foi tão profundo que a realidade não se reconhece mais no seu derradeiro retrato estrutural fidedigno representado pelo censo agropecuário de 1985. Por essa razão, causa preocupação a informação do adiamento da realização do censo agropecuário antes programado para 2005³. Mais ainda, causa estranheza a persistência da mesma razão aventada desde os anos 90, qual seja a falta de verbas para a pesquisa. Mais uma vez, a falta de bom senso produz a falta de bom censo.
            O superávit da balança comercial e a seqüência de supersafras, que engrandecem os agronegócios, não sensibilizaram os tomadores de decisão para que ao menos isso fosse registrado para a história num retrato fiel de sua pujança estrutural. Por que, talvez, se haveria de enfrentar mais uma vez o aprofundar das mazelas sociais?
            De qualquer maneira, o Brasil agrário não se reconhece mais na última fotografia oficial. A solidificação da democracia exige que a sociedade conheça a si mesma e reconheça a si própria em retratos estruturais de seu principal setor econômico, os agronegócios, firmados nos censos agropecuários.
            Nada justifica a falta de bom censo, nem mesmo a falta de bom senso em postergá-lo em prol da meta de superávit primário, dado que nada é mais primário que insistir em navegar em águas turvas sem radar adequado. Sem esse radar estrutural, os agronegócios brasileiros podem transformar-se num Titanic, engendrando movimentos cegos até encontrar algum iceberg. E o capitão e sua tripulação não têm como planejar rota segura para seu curso histórico.

¹ REDHER, Marcelo Desemprego quase dobra em dez anos. O Estado de São Paulo, 15 de novembro de 2004, p. B1 (Caderno Economia & Negócios).

² GONÇALVES, José S. Ter Bom Censo é Questão de Bom Senso. Informações Econômicas 25(12):7-8, 1995.

³ CARDOSO, Fátima Censo agrícola é adiado de novo. O Estado de São Paulo, 19 de novembro de 2004, p. B20 (Caderno Economia & Negócios). 
  
 

Data de Publicação: 08/12/2004

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor